A obra chegou e a água acabou

No povoado de Montevidéu, em Salgueiro, a ironia é dramática. As obras da transposição chegaram e a água acabou. Fica difícil saber o motivo, afinal cada um dá uma opinião diferente. Solução, no entanto, ainda não há. Ali perto, após a divisa com o Ceará, a situação é insólita. A obra virou pista de cooper. Na terceira reportagem da série, conheça as distorções e ainda o mais polêmico trecho do projeto.

Montevidéu, nome da capital do Uruguai, é um povoado nordestino. Especificar mais que isso é difícil, até para os governos. No mapa, é município de Salgueiro, Pernambuco. Mas fica tão perto da divisa com o Ceará, da cidade de Penaforte, que se perde no empurra-empurra entre autoridades. Em 2009, chegou lá a obra da sonhada transposição do Rio São Francisco. Montevidéu parecia ter sido premiada com a construção que simboliza a esperança de água no Sertão nordestino. Foi o contrário. Por uma grande ironia e uma coincidência de problemas, a transposição chegou e a água acabou.

As versões são desencontradas e cada um aponta um motivo para ter faltado água em Montevidéu. O problema é que todos têm justificativa, mas até agora ninguém de fato apresentou uma solução. E assim, no meio de muitas desculpas, Montevidéu se perdeu entre Pernambuco e Ceará.
Ali passa o lote 4, contrato que o Ministério da Integração Nacional decidiu romper com o consórcio Encalso, Convap, Arvek e Record. São cinco segmentos de canal em 20 quilômetros de extensão, com túnel e até barragem. O lote, parado desde maio passado, apresenta o pior avanço nas obras, de só 13% de execução física.

O Açude Oliveira era a única fonte original de água para 144 famílias de Montevidéu. Uma outra forma de abastecimento surgiu de um arranjo entre a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), a prefeitura de Salgueiro e a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece).

Pela proximidade com Penaforte, ficou mais fácil levar ao povoado a água da Cagece, por uma rede de canos instaladas em Montevidéu pela Compesa. O abastecimento era racionado, coisa normal no Sertão, onde cidades ficam 15 dias ou mais sem água, regime que é justamente um dos grandes motivos da existência da transposição.

Do açude ou da Cagece, as famílias estocavam o que podiam. Veio a construção e, embora a razão não esteja muito clara por causa das diferentes versões apresentadas por moradores, Compesa, Cagece, prefeitura e governo federal, durante as obras a água acabou.

Nas casas, os medidores nos canos não têm mais utilidade. “O relógio [MEDIDOR]está ali. Eu já levei foi topada”, ironiza a aposentada Maria Rosa da Silva, 64 anos. Ela não sabe por onde começa a reclamar. Fica feliz por desabafar, mas a insatisfação é grande. Assim, a aposentada faz tudo ao mesmo tempo: ri, resmunga e fica com raiva. “Sem água não presta não. Não estou gostando. Estou aqui, assim, sufocada. Esperar que chegue água? Como é que não chega essa água na minha casa?

No terreno dela, há duas casas, ambas da família, mantidas hoje com água comprada a intermediários, que cobram caro. O marido de Maria Rosa passa o dia fora. Ele tem 68 anos e nunca se aposentou. A água comprada a terceiros, a comida, os remédios e aquela rara cachacinha, tudo sai dos R$ 540 da aposentadoria de Maria Rosa.

“Era bom quando chegava água encanada. Sempre chegava e eu botava num depósito, em uns baldes, para quando faltasse eu me prevenir. Agora não tem. Tem vasilha, mas não tem água. Nunca dá nem para encher. Porque água vem cara, água vem pouco, todo dia a gente gasta. Como é que pode? Água tem que ser muita, né? Numa casa a pessoa gasta água”, enfatiza.

O problema é identificar o que aconteceu. Os próprios moradores da região falam que as obras romperam o açude. Maria Rosa diz que a construção quebrou até os canos. A comunidade alertou a prefeitura sobre o suposto roubo de uma bomba de água. E o Ministério da Integração Nacional garante que o açude secou pela estiagem e não foi rompido. A Compesa, procurada, silencia.

Nessa confusão, a única que admite alguma responsabilidade nos problemas é a Cagece, que, em nota, informa ser impedida pelo estatuto de manter o fornecimento para Montevidéu, território fora do Ceará. Mesmo assim, não apresenta alternativa. Estaria “estudando soluções jurídicas”.

Maria Rosa fica confusa no jogo do empurra e diz que, em uma dessas idas e vindas, pensou em usar violência. “Eu não estou gostando disso de jeito nenhum. Uma vez eu estava tão abusada que tive vontade de cortar um camarada lá em cima”, fala, em tom ríspido, referindo-se a alguma “autoridade” que não ela quis revelar. Quando a situação aperta mesmo, Maria Rosa e os vizinhos apelam até para o restinho de água enlameada no reservatório. “Às vezes a gente vai apanhar naquele açude. Mas eu não gosto, a água está nojenta.”

A gente tinha um sistema de abastecimento, a partir de um açude que existia na região. Antes mesmo da transposição, construímos um novo sistema que complementaria essa água que vinha do açude, uma articulação com o Estado do Ceará”, relata a secretária de Planejamento da Prefeitura de Salgueiro, Ana Neide de Barros.

Apesar da Cagece admitir por escrito que suspendeu o fornecimento para Montevidéu, a secretária afirma que o problema seria apenas da frequência com que a água chega da companhia cearense. “As casas continuam com o mesmo número de ligações [com a rede da Cagece]. Temos discussões com o Ceará para tentar fazer um abastecimento mais regular”, afirma Ana Neide.

A coordenadora geral de Programas Ambientais do Ministério da Integração Nacional, Elianeiva Odísio, assegura que o Açude Oliveira não foi rompido e que houve apenas a abertura de um vertedouro, para dar segurança ao reservatório. O nível de água baixo seria em razão da estiagem. “Eu insisto, não rompemos o açude”, reforça. Ela adianta, porém, que no futuro o rompimento será necessário por causa da transposição, uma intervenção com anuência da prefeitura de Salgueiro dada por escrito em 5 de maio passado. A contrapartida será a construção de um outro reservatório, a 1,5 quilômetro dali.

Enquanto isso, o Açude Oliveira, vazio, contrasta com alguns segmentos do lote 4 que acumularam água das últimas chuvas. Em 14 de outubro passado, um homem até morreu afogado em um dos trechos do canal. Seu corpo só foi encontrado por um mergulhador dos Bombeiros de Serra Talhada, deslocado para as buscas.

Diante da completa ausência de sugestões para resolver o drama do povoado, na entrevista Elianeiva se propôs ao menos a começar a discussão. “Vou fazer o seguinte: vou estar em Salgueiro na semana que vem [NESTA SEMANA]e me comprometo a provocar uma reunião com o prefeito [Marcones Libório de Sá] ou com a própria secretária Ana Neide para definirmos alternativas, estudarmos uma solução para aquela comunidade.”

Maria Rosa, a aposentada, lembra das outras promessas de religação do abastecimento. “Nós vamos remendar aí, vai voltar água para a senhora.’ Cadê essa água que não chega? Só quando Deus mandar. Eu vou ficar aqui esperando por Deus. Diz que quem espera por Deus não cansa e eu acho que estou cansando, mas vou levando”, comenta, indignada, e emenda uma risada nervosa, num misto de incredulidade e raiva.

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